quinta-feira, 20 de setembro de 2012

continuação (parte III)

Parte III

Pensar a cultura como sendo sinônimo da alta cultura burguesa (Belas Artes, conhecimento científico etc.), e apenas isso, também leva a um outro equívoco: desqualificar tudo aquilo que não faz parte desse universo cultural. Ou seja, tudo aquilo que não for a “mais sincera expressão da alma” (Belas Artes), o que não for o mais “avançado refinamento dos costumes” (educação burguesa), ou o que não for regido pela razão científica (conhecimento científico), é obscurantismo, é foco de violência, é arte sem valor, é atraso etc. Chegamos aqui, então, a um dos maiores problemas contido nessa noção de cultura: ela desqualifica e renega a cultura popular, ou a cultura das classes subalternas (para usar essa expressão do filósofo italiano Antonio Gramsci). Na ótica do cidadão ilustrado, a cultura das classes populares não é cultura, e, portanto, é comum ela nem entrar na pauta de discussão de uma ação cultural ou política cultural. Mais que isso, geralmente ela é objeto de perseguição e preconceito. Todos conhecem a história do samba, não? Originário das camadas pobres e populares do Rio de Janeiro ele foi por muito tempo combatido pelo Estado, perseguido pela polícia, pois ele era sinônimo de coisa atrasada (coisa de negros!), ele era visto como sinônimo de violência e assim por diante.
Ao desqualificar a cultura das classes subalternas (a cultura popular), a elite (política, econômica, intelectual etc.) age por meio do não-reconhecimento de uma cultura diferente da dela. Assim, a elite liberal do século XIX construiu museus, teatros, bibliotecas etc. para, primeiro, arquivar e dar forma a sua própria cultura e, segundo, para que essa mesma elite, e tão somente ela, pudesse ter acesso a esses bens culturais. Do mesmo modo, essa burguesia liberal construiu sua própria memória histórica (seus “heróis”), seus próprios dias de comemorações e seus próprios dias de festas. Na fase liberal do Estado burguês o “povo” não entrava na jogada, a não ser como meras bestas de cargas, como trabalhadores. Na época da social-democracia do Estado burguês, época que chamamos de “Estado do bem-estar social”, que durou aproximadamente de fins da Segunda Guerra Mundial até os anos de 1980 (variando de país para país), e após sangrentas lutas entre trabalhadores e capital, o “povo” passou a ser notado, no sentido cultural. Mas notado como? Notado como pessoas incultas, mas que “mereciam” ser educadas e ter acesso aos bens culturais (da burguesia!). E assim, instalou-se a política chamada de difusionismo. Ou seja, difundir os bens culturais de uma elite (da burguesia) para todos, como se os valores culturais dessa elite fossem universais e igualmente importantes para todos. É deste tipo de política cultural - que não reconhece as classes populares como agentes e/ou produtores culturais, mas apenas como seres incultos e passivos que têm que ser educados na e pela cultura burguesa - que saiu propostas como: concertos de Orquestras (ou similares) em bairros de periferia ou praças públicas, bibliotecas volantes, teatro na periferia, a gratuidade dos eventos, cinemas na rua etc. São as tais políticas “inclusivas”, onde o que se quer incluir é o “homem popular” na cultura burguesa, destituindo-o de sua própria cultura. Notem, embora importante e significativas, tais ações pecam por não reconhecer o “popular” como produtor de cultura, apenas o entende como “consumidor”, quase sempre passivo (o que não é nunca verdade). Não se trata de “diálogos” entre culturas diferentes (o que seria bom), mas sim de imposição de um padrão cultural de uma classe social para outra classe social. A cooptação é notória. O 1º. De Maio é o exemplo clássico. O Dia do Trabalhador, nascido e criado nas lutas operárias contra o capital, transformou-se no Dia do Trabalho, um dia de show na praça, um dia de lazer descomprometido. Ao invés de se cultuar a memória do trabalhador, cultua-se o oposto, cultua-se o trabalho (fonte da dominação de classe exercida pela burguesia). Cooptado, o 1º. De Maio perde seu sentido de cultura operária, de cultura popular, e passa a integrar as festividades da burguesia com seus showszinhos na praça e tudo o mais.
  O samba – (assim como outras manifestações culturais de origem popular) - teve que conquistar seu lugar na sociedade, a duras penas. E, claro, nesse trajeto, houve muita cooptação por parte do Estado e dos interesses econômicos de gravadoras, rádios, TVs e coisas afins. Mas o exemplo ainda continua válido. Assim, temos que a cultura popular - (enquanto não for enquadrada pelo gosto burguês, como foi o caso do samba, que de marginal virou símbolo da nacionalidade do país) - não entra na pauta, mas os “populares” sim, esses entram. E de que forma? Através do difusionismo. (continuação na parte IV)

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