sexta-feira, 31 de agosto de 2012

C U L T U R A - uma palavra problemática (parte I)

Cultura: uma palavra problemática
 texto escrito por *José Adriano Fenerick
*doutor em história da cultura pela USP. Professor de hístoria na Unesp de Franca, SP.

Uma das maiores dificuldades encontradas pelo agente cultural está em definir seu campo de atuação. Mesmo para aqueles que sentem reais necessidades de intervir no campo cultural de sua cidade, de seu estado ou de seu país, não é raro o entusiasmo inicial se transformar, em pouco tempo, em angústia ou desânimo. Ainda no que diz respeito à ação cultural, não é raro ter-se muita dificuldade até mesmo para reunir inicialmente um grupo de pessoas, ainda que não muito numeroso, pois, mesmo que inconscientemente, todas as pessoas têm sua própria noção do que seja cultura (o que não quer dizer que essa noção seja a mesma para todas elas), seus próprios interesses, e isso pode fazer com que o grupo não canalize suas melhores energias para o mesmo ponto – o que pode enfraquecer uma ação cultural legítima, ou mesmo levá-la a uma “morte prematura”. Se do lado da ação cultural proveniente da sociedade civil podemos encontrar tais dificuldades, do lado da política cultural proveniente do Estado (em seus três níveis), uma má compreensão do campo de atuação de uma política dessa natureza pode gerar (e é freqüente observar isso) equívocos, erros desnecessários, ou mesmo causar um efeito oposto ao desejado pelo governante. Questões como essas, em grande parte, deve-se à imprecisão e à polissemia do conceito de cultura e tudo o que daí é derivado.
O conceito de cultura, já largamente estudado por vários historiadores, sociólogos, antropólogos, filósofos etc. tem uma origem que remonta à Antiguidade Clássica, possuindo ao longo dos séculos, ao menos no Ocidente, uma gama enorme de significados e definições. Não é o caso aqui de refazermos todo esse percurso, mas seria importante refletirmos um pouco sobre os dois modos mais recorrentes de definição de cultura encontrados atualmente. O primeiro modo define cultura como um conjunto de práticas, hábitos, crenças, valores, costumes etc., partilhados por um mesmo grupo social – trata-se de uma definição antropológica, onde a cultura é vista como o “modo de vida” de um povo, de uma sociedade etc. É a partir dessa definição, ampla, que podemos nos referir à cultura japonesa, à cultura brasileira, à cultura paulista, à cultura jaboticabalense e assim por diante. Isso tudo se refere a diferentes “modos de vida” de diferentes povos, comunidades ou sociedades. Diferenças essas que podem ser tanto temporais (históricas) quanto espaciais (geográficas). Se essa primeira definição é extremamente abrangente, pois envolve um conjunto muito grande das atividades humanas (que varia desde o quê e o como se come, até o quê e o como se veste – de o como se nasce, até o como se morre), o segundo modo de pensar a cultura é, ao contrário, extremamente restrito. Trata-se de pensar a cultura como sinônimo de Belas Artes (teatro, música, artes plásticas etc.), de conhecimento formal (de conhecimento adquirido nas escolas e universidades), de Belas Letras (literatura). Esse último modo, inclusive, é o mais corriqueiro e o mais fácil de ser encontrado entre o senso-comum, entre as pessoas de um modo geral, que passam, então, a fazer uma distinção entre pessoas cultas (com cultura) e incultas (sem cultura).
            Geralmente, entre os agentes culturais da sociedade civil e entre os elaboradores de políticas públicas, essas duas definições de cultura não são pensadas como complementares e inter-relacionadas, mas sim como distintas, sem vínculos entre uma e outra. Quando pensada isoladamente, a definição antropológica de cultura (como um “modo de vida”) parece levar apenas à contemplação e ao imobilismo. Por exemplo: a cultura - o “modo de vida” - do jaboticabalense é o que é, não podemos interferir aqui, pois se trata de questões privadas de cada um. Como é possível intervir, ou ainda, é justo intervir no modo de ser de cada um, na crença de cada um, no gosto de cada um? Gosto e religião - juntamente com o futebol - não se discutem, não é isso que diz o adágio popular? Tais dúvidas e questionamentos já colocam a definição antropológica de cultura (quando se quer propor uma ação cultural) para escanteio antes mesmo de o jogo começar. Sobra, então, a outra definição e é para lá que todas as atenções normalmente se voltam e é de lá também que vêm os maiores equívocos, erros e ações públicas “desgovernadas”.

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